domingo, 26 de fevereiro de 2006

Contraponto

Ao invés das litanias virtuais, a blogosfera também pode ser uma amplificação refractada da solidão.

Séries blogueiras (3)

Estiolaste cedo, companheiro.

Séries blogueiras (2)

(get it?)

Séries blogueiras

Ando com a pulsão de acrescentar números de série a quase todas as postadas, que o mais fatal será quedarem-se em série de um, mas que não resisto a enunciar, como que prometendo ou desejando a sua sequência.
Descobri que o problema não é tanto eles darem uma bela série. O problema é a circunscrição da imaginação, cativa do ser estagnante que a retém. Sempre soube que, qualidade fora, nunca teria muitos posts (e títulos) para dar. Recauchutar em vias formatadas conforma-se a única senda do possível futuro.

Circunstâncias válidas para açoite público (1)

Na FNAC, voz de moçoilo desempoeirado anuncia o cancelamento do showcase (atenção: showcase(?)) de Aldina Duarte.
A substituição, informa-nos em seguida, será cumprida pela «exibição de The River, de Jean Renô».

sábado, 25 de fevereiro de 2006

Serviço público de blog (1) - TVCabo

O ter-se televisão por cabo parece cada vez mais ser assumido como default em todos os panoramas televisivos domésticos. Ora, não o é. Cumpre esta postada pois o serviço público de situar a relevância de tal recurso para ambas as partes na relação de posse de tal "bem".

A televisão por cabo é largamente um embuste. Promessas ditirâmbicas para a retina sonorizada de quarenta e quantos canais afinal de regurgitação audiovisual (para soar bem) dos quais quase nada se aproveita: dá para ver telejornais com as mesmas notícias o dia inteiro (a ficção e obsessão do tempo real), e afogarmos a neurastenia na sua reconversão sitcómica. (ponto). E sendo veiculada uhhh... por cabo!, ainda mais não percebe, mas tem interrupções e distorções de emissão mais frequentes que os velhinhos transmissores de Bobadela. Donde:
desabonados da TVCabo: cobiçai outras prebendas.

Mas para quem TVCabo, há méritos recônditos naquela avalanche disforme de estímulos audiovisuais, que pela própria natureza da avalanche requerem olho inquiridor para se descobrirem. Por exemplo, para o cansado manipulador de telecomandos, de pés descalços em cima da mesa de café após dia de labuta na repartição, o panorama fílmico (para quem ainda não aderiu às fraudes dos canais especiais a pagar a dobrar) são pseudo-êxitos recauchutados de finais da década de 80. Mas vamos a olhar todo o panorama horário, e o que se nos acomete é que os goodies estão todos refundidos no findar da madrugada. Por goodies entenda-se clássicos norte-americanos (os frenéticos da super-onda de cinema asiático, «cadê Taywan os coreanos a quinquagésima-sexta geração chinesa e Hong-Kong se conseguir subir o escalão escatológico ou isso são os coreanos?», não vão longe, é vero, mas para isso ainda há salas de cinema). Ora vejam, nem há dois dias, deparo-me com 3 em linha, seguidinhos, das 7 da manhã às 2 da tarde: um Walsh de verve impecável; um Ray, atípico, mas um Ray; e um Minelli. Problema: a cassete não dá para straight flushes destes. Donde:
defraudados da TVCabo: no mínimo, exigi acoplado ao cabo um programador de vídeos (caso se careça, vídeo incluído - a minha one-man DECO está convosco).

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

Semiótica à queima-roupa (2)

Por vezes, a diferença entre o labrego e o senhor repousa num botão de camisa.

Subversão cultural (2) - a ironia serve-se aos pacotes

Delineam-se estratégias ao milímetro para romper as convenções estabelecidas de práticas sociais aceitáveis em recintos culturalmente marcados e... antecipam-se a nós. Ou quase.
Recapitulemos ida estória em nova ocasião: Cinema de mega-centro-comercial. Sessão da meia-noite. Jarmusch no cilindro. Entro na sala e a esperada solidão é logo desenganada por uma casal amoroso. Horror: pacote de pipocas! Um casal a ver Jarmusch armado de pipocas. Lá se foi (pensava eu) o meu brilhante programa revolucionário de ver no cinema um Oliveira e comer pipocas (ainda que o gesto não seja o mesmo com Oliveira e o Jarmusch, mas era próximo q.b.). Sento-me à distância possível entre conservar a centralidade do ecrã e evitar o mascar baboso daqueles atentados sonoros.
Logo entra um grupo de adolescentes daqueles que ainda não deviam ter idade para serem como tal classificados e que deviam estar a ver pela segunda vez o King Kong. Espanto. Horror multiplicado: sentam-se ao meu lado! Horror repetido: mais pacotes de pipocas! Um juvenil planta-se exactamente na cadeira ao lado da minha e começa impudicamente a violar-me os ouvidos com os movimentos obscenos do maxilar a trabalhar o milho estropiado. Lamento. Todos traçamos a linha algures. Pipocas a trespassar-me o canal auditivo transfiguram-me. Adeus polida aparência de ser polido. Levanto-me. Vou sentar-me no fundo mais fundo e isolado da sala. Não tão isolado quanto isso.
Começa o filme. O casal amoroso? As pipocas são o menos. Passados minutos continuam a falar tão alto quanto falavam antes de as luzes se apagarem. Brincam entre eles e com as pipocas como se estivessem no sofá em casa. Aposto que iam para este filme na esperança de se apanharem sozinhos e trepar na sala (fraca transgressão...). Espero mais cinco minutos para confirmar a certeza antecipada de que se não vão calar e para preparar uma frase brilhante e indisputável para que no cristalino mundo da retórica eu saia a ganhar alguma coisa mesmo que continuem a falar depois da minha admoestação. Já chega (já decorei a frase). Levanto-me. Coloco-me, paternalista, no interstício das suas cadeiras a fazer aperceber a minha cabeça pela abertura, com os braços simpaticamente ameaçadores envolvendo as cabeceiras das poltronas gigantes. Inicio a brilhante récita: «Oh meus amigos...» - e ah!, sou brutalmente interrompido pelas suas falas extemporâneas «ah, sim, sim, desculpe». Bestas (a melhor frase que nunca direi jogada no lixo... conteste quem quiser...). Se se quisessem mesmo desculpar ouviam a palestra até ao fim e DEPOIS desculpavam-se. Era a mínima penitência aceitável. Camelos. A vossa pretensa solicitude não me engana...
Os outros descendentes de primatas vão fazendo os seus barulhos, mas na arquitectura da sala estou minimamente protegido por um canto para não ter que fazer a missão civilizadora de os mandar calar (civilizadora precisamente porque de antemão sabida inoperante - a reiteração da regra, não da conformação à mesma).
Passado uns minutos, o casal amoroso levanta-se e vai postar-se umas quantas filas à frente. Não se deviam conseguir conter. Há gente que não vai mesmo ao cinema para ver cinema (uma demarcação socio-espacial não regula todas as práticas e utilizações que dela se usam).
Assim se pranta o panorama para ver a hora de filme que me resta, com a porra da luz de saída a espetar-se na periferia da minha retina direita. Animais.
Quedou-se-me desta provação a manutenção da validade específica do meu programa de subversão cultural: esta gente veio ao engano (dessa intenção), e as pipocas não eram o instrumento revolucionário mas o marco de denúncia do seu equívoco: o casal sai da sala meia-hora antes do fim (se tivesse acabado o meu discurso censório ao seu palranço poderia presumir terem ficado insuportavelmente cobertos de vergonha até cederem ao peso do meu olhar reprovador atrás de si instalado, mas não foi o caso...). Os demasiado pré-adolescentes aguentam até ao fim (valentes, ou como eu querem ter their money's worth, seja lá o que for, tal como eu aturei as 3 horas do Kong). Mas o alívio da minha previsão cultural vem sob a forma de comentário jocoso: «oh sim, este vai mesmo para os Óscares». Ah, grunho demasiado seguro de ti, por uma vez a tua incontinência verbal prestou serviço ao mundo. Mas para quê testarem a minha pachorra para chegarem à conclusão que eu previa quando os vi envergando os pacotes? Eu podia tê-los avisado... É no que dá brincar aos elitistas de pacotilha na periferia. Mas no cerco incontornável da previsão não há manobra para a mudança e a iluminação (que eu sei, que tive também por vias travessas). Por isso, num fundo muito recanto recôndito da mente, suponho que não faço questão de ter a sala da meia-noite só para mim (a racionalidade quase só nos outorga tormentos).

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

Hipocrisia técnica

Quando um clínico badocha nos censura com reverberante indicador moral espetado no ar a escusa à prática higienista do famigerado exercício físico.

Aquém e além do choques de civilizações

Há poucos dias, no Público, numa recolha de declarações a propósito da crise supostamente dos cartoons, logo na 2ª página do jornal, aparece, fotografado e tudo, o eminente filósofo Fernando Gil, a perorar sobre os termos da "alma muçulmana", conceito altamente preciso e rigoroso que obviamente era o que faltava para explicar cabalmente todos os problemas sociais ou geopolíticos ou o diabo-a-quatro que se têm erguido sob a fachada de uma diferença civilizacional.
O que escapa a todos os cavalheiros que empregam estes raciocínios, neste caso epitomizados ao ridículo pelos dislates típicos de certa tradição filosófica portuguesa, é que se a sua lógica faz algo é irmaná-los no mesmo reducionismo colectivista e generalizante que os ditos muçulmanos que de várias formas protestam contra a publicação dos cartoons empregam para culpabilizar todo o "Ocidente" ou a Dinamarca em particular (por exemplo, através do boicote de produtos). Os termos comunitaristas viciosos desse raciocínio estão bem criticados para o lado muçulmano (não nos vão tomar por ocidentalófobos...) aqui.

O que não parece fazer a sanha civilizacional destes ocidentais épicos tão daninha é a efectiva diferença histórica no weberiano controlo legítimo dos meios de violência, parcialmente mais significativo no estado dito ocidental, e na fertilização activa mútua da razão de Estado com a "razão" religiosa.
Contudo, lembremos que inúmeras manifestações da "sensibilidade" católica se expressaram no nosso próprio querido país e alhures (o exemplo mais recente é capaz de ser este), com intencionalidades estritamente censórias no apelo ou condicionamento da acção governamental(com sucessos assinaláveis) e da própria ordenação jurídica da relação da forma laica do Estado com os cidadãos (olá, questões fracturantes). Portanto, não é por se tratar agora de geopolítica e de muçulmanos que a situação é nova nos termos da liberdade de expressão, que têm sido os privilegiados na discussão. A única diferenciação do impacto da religião nessas manifestações e nessa formatação, é que supostamente no nosso caso elas não comprometem constitucionalmente o Estado (muito menos o instrumentalizam já activamente), mas no entanto condicionam-no, ainda que sob a coberta do lastro histórico; e que, mais uma vez, em geral a natureza dessas manifestações não ameaça tanto a quebra ou abuso do controlo legítimo dos meios de violência (mas não esqueçamos que também nesse plano não é tudo pêras doces cá no burgo ocidental - vejam-se os "atentados" a clínicas de abortos nos EUA, só como um exemplo).
Mas não é esse o fulcro do problema: quando a barraca principalmente abana é quando os principais detentores desse controlo legítimo dos meios de violência, em ambos os casos os Estados, decidem empregá-lo. Claro que esse controlo é articulado de forma diferente com as apropriações não estatais dos meios de violência, nomeadamente no terrorismo: no caso islâmico, por vezes, com o apoio subreptício (digamos) de certos estados contra outros estados. No caso ocidental (também cá há terrorismo, lembram-se?), geralmente dentro dos estados, contra os estados, e as imposições históricas (pelo controlo da violência) da sua forma política a circunscrições étnicas não conformes a essa forma de territorialização. Diferença não dispicienda. Mas considerando que a lógica de raciocínio parece ser bastamente partilhada entre "ocidentais" e "muçulmanos", numa lógica sistémica, ainda que os rastilhos pareçam ser acesos e de forma mais incontrolável do lado muçulmano (coisa também absolutamente não dispicienda, independentemente de rastilhos ocidentais se porem a jeito, que também não é o fulcro da questão, e pelo que nenhum governo se deve "desculpar"), a propensão para o espoletar de um choque civilizacional parece tornar-se bastante partilhada, num fechamento estratégico que não faz grande honra à abertura e razoabilidade genérica dos princípios que andamos (quase) todos para aqui a defender.

Ou seja, às vezes o veneno contra os nossos belos (sim, belos) princípios abstractos (sim, abstractos, e isto não é nenhum "mas" à defesa da liberdade de expressão, é apenas sublinhar que um princípio abstracto não se confunde nunca com aas suas condições e termos de aplicação concreta, sublinhar esse, necessário para a optimização da sustentação efectiva da aplicação desse princípio - vejam-se aqui, e meio a despropósito mas a jeito aqui, tópicos quasi-inexplorados em tanto paleio sobre liberdade de expressão; aliás, em nome do princípio da liberdade de expressão seria interessante aproveitarmos a ocasião para lembrar que há vários limites instituídos nas ordens políticas de estados ocidentais à dita cuja), vem de dentro.
Fernando Gil, na sua retórica fundamentalista (ah pois, há lá coisa mais fundamentalista que agregar a uma colectividade de geometria variável uma alma inescapável? - e não me venham dizer que ele quer dizer outra coisa como "civilização" ou "cultura", vocábulos que estou certo, apesar do absolutismo conceptual, não desconhece, e preteriu conscientemente) notwithstanding pró-ocidental, emprega a sua liberdade de expressão para lhe dar o pior emprego possível na suposta defesa o mais ampla possível dessa mesma liberdade, que parece excluir "animicamente" uma bela porção "irrecuperável" da humanidade. Uma bela contradição nos termos. Ou seja, este episódio também tem sido instrumentalizado do "lado ocidental" para falar encapotadamente de algo mais do que a defesa da liberdade de expressão e alimentar a pretensão de um choque de civilizações, aliás, perdão, de almas. Ou seja, nem tanto ao Gil, nem tanto ao Freitas.
Reforçar a argumentália aprioristica das civilizações, enquanto tal, é criar o húmus propício para que estratégias estatais e políticas identificáveis germinem fenómenos que efectivamente cada vez mais se expandam desse referente ideológico e táctico específico para uma legitimação civilizacional toda-abrangente. A isso, em parte, se chama profecias que se cumprem a si mesmas.

Pela minha parte, se, depois de ler estas coisas de almas e tal, virar taliban, em memória do meu querido antigo self já sabem quem é que podem pôr em tribunal.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Homo Homo Oecunomicus

Noticiava o Público, basto tempo ido, nas funny news, que um cinema em Itália iria atribuir 50% de desconto no bilhete de admissão ao "western gay" (ó por favor...) "Brokeback Mountain" a quem se identificasse como homossexual no acto (da compra) (do bilhete) (para o cinema).
Não nos equivoquemos. Isto não é uma curiosidade, nem indicador espúrio de qualquer tendência cultural. ISTO é o método experimental mais sofisticado que os modelos economicistas abstractizantes podem vir a sofrer nos seus pressupostos a mimetizar modelos "exactos" para a racionalidade económica.
É muito simples: ou 100% dos espectadores nesse cinema se apresentam como declarados homossexuais (independentemente das suas devoções sexuais - haveria que fazer uma inquirição pós-acto para verificar da diversidade da amostra, talvez com sensores na genitália e filmes "estimulantes" como se deve empregar hoje em dia para averiguar da "pureza" no ingresso seminarista), e assim a noção de homo oeconomicus ganha fulgor de cientificidade e insuspeitas virtudes sociais; ou, caso contrário, um prego de ouro se martela no caixão nunca suficientemente enterrado no corpus desse homo. Your ass is on the line.

Semiótica à Queima-Roupa

Ontem, numa sala cheia de gente, estando quasi-inconscientemente sensível à possibilidade de estar presente um bloguista que me é familiar somente in writting, dei por mim a "reconhecê-lo" (assim mesmo) on the spot.
Encontro-me abismalmente (assim mesmo) inquieto: ter-me-ei conseguido livrar de boa de ser um espantoso Lombroso?

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2006

Semiologia à Queima-Roupa (1)

Perguntei-lhe se já tinha ido ver o «Brokeback Mountain», e o gajo tomou-me de ponta.

Nova (velha) litania para velho (novo) instrumento

«A guitarra clássica é um instrumento que, apesar de todos os seus famigerados renascimentos, em diversos séculos e espaços, se manteve, e provavelmente se manterá, num espaço secundário de produção musical erudita, em paralelo com o seu extenso papel lúdico (e impulsionador da história da música popular) de pôr taralhocos a pretenderem ser génios musicais por saberem arranhar três acordes e por seu intermédio galarem as miúdas do bairro no parque da cidade, pois que os vãos de escada já eram (e o mais bizarro é terem, de facto, assim surgido uns poucos génios, mas isso é noutras conversas, e francamente duvidamos que se trate do mesmo instrumento). E se é verdade que (vejam-se os nomes que vão surgindo a bom ritmo nas edições de guitarra da Naxos) começa a parecer haver alguma massa crítica de instrumentistas com capacidades técnicas suficientemente apetecíveis para arregaçar as mangas e dar vida a uma ampliação da literatura musical outorgada ao instrumento por uns poucos, benfazejos, compositores, a renovação do repertório guitarrístico é de uma lentidão exasperante. Edições sobre edições das mesmas obras são regurgitadas sobre os escaparates, num exercício autofágico de redundância instrumental. Tamanha a redundância, que não só os mesmos compositores são recorrentemente re-gravados, como são apenas específicas obras do seu repertório que ressurgem. Do compositor sobre o qual aqui nos debruçamos, e falando apenas de concertos para (uma) guitarra, por exemplo, apenas nos recordamos de uma gravação do seu Concierto Para Una Fiesta, pelo bendito David Russell. É óbvio que há uma selecção natural do repertório que o instrumento vai agregando, mas exercida ao limite leva à extinção, pelo que cautelas na estratégia editorial que tem marcado a história do instrumento seria aconselhável para garantir a sua sobrevivência em meio onde os restantes instrumentos clássicos conhecem maior abundância, visibilidade e qualidade de produção.

E, no entanto, é de uma re-gravação de aqui falamos, e logo de campeões de re-gravações: Rodrigo e os seus Concertos para Guitarra, o de Aranjuez em primeiríssima linha, e a Fantasia Para un Gentilhombre.E se falamos desta re-gravação, é porque também as há que valham a pena, quando as versões que estão disponíveis são, essas sim, propriamente, reedições, dos guitarristas canónicos do “ressurgimento” da guitarra no século XX, mas que, francamente, face à extraordinária, conquanto muito subterrânea, renovação da técnica guitarrística nas últimas décadas do século (caso singular que expressa o quanto, e em quantas vertentes, o instrumento depende da disposição corporal do instrumentista, na sua extrema “fisicalidade”, dada a precaridade extrema da produção e projecção do som) de canónicos, actualmente, não têm (ou não deviam ter) assim tanto (resguardada, obviamente, a sua vital importância histórica, da qual, no limite, este texto dependerá, tal é a contingência da existência pública do instrumento). O facto, fenómeno provavelmente inaudito no reino instrumental, é que boa parte das aproximações instrumentais ao repertório canónico da guitarra estão hoje consideravelmente datadas, quer pelo monstro-sagrado-acima-de-todos-e-ai-de-quem-lhe-toque Segovia, quer pelos seus discípulos, como os monstros-sagrados-mas-não-tanto Julian Bream e John Williams, que até se desligarem da sua estrita influência também produziram gravações hoje algo daninhas para o tímpano (e referimo-nos explicitamente a coisas como o absoluto abuso, quer em quantidade quer em qualidade, de timbres metálicos, que, se teoricamente fazem todo o sentido na complexificação interpretativa da dinâmica musical, eram reproduzidos num estridente, insensato, desproporcionado e discricionário assalto aos sentidos).
Assim sendo, de novos guitarristas canónicos se carece, para darem a frescura, apuro e esmero assisado que o repertório do instrumento, há tanto re-gravado, merece. Ora, pequeno problema, guitarristas canónicos (o mesmo é dizer GRANDES guitarristas), não há provavelmente nem meia dúzia hoje (pelo menos, por enquanto). Pelo que é sempre de saudar a revisitação que esses poucos façam deste repertório, para criar novas gravações de referência para gerações futuras.
O cubano Manuel Barrueco é, diríamos, o guitarrista por excelência da perfeição canónica. Tocando numa guitarra que certamente deve ter as cordas numa tensão impossível que quase nos deixa incrédulos quanto à possibilidade de ainda fazerem vibrar as notas, Barrueco é o guitarrista que mais respira técnica no seu toque. As suas gravações são exercícios irreprensíveis de restituição fiel das possilidades estritas desenhadas por uma pauta. Ou seja, se na generalidade, para milagres interpretativos que apelam mais à transcendência que à demasiadamente humana produção de som guitarrístico, os santos da casa são mais um escocês chamado David (Russell), e dois brasileiros chamados Sérgio e Odair (Assad), no seu auge; para a constituição de um cânone (que implica a possibilidade de reconhecer na interpretação as possibilidades de uma pauta – pedagogia instrumental), Barrueco é capaz de ser o nosso homem. Não se retire daqui que a criatura é um robô instrumental que, em fabulosa técnica mas despida interpretação, regurgita pautas. As suas leituras são sempre do mais justo e adequado que uma pauta oferece. Não são portanto leituras que tenham por fito alcandorar-se a “excessos” interpretativos que “borrem” aquilo que uma composição, nos seus estritos limites, pressuponha. Não é pecado, é estilo musical. Há quem reze por um, há quem reze por outro, nós rezamos pelos dois, conquanto os fantasmas do virtuosismo estéril e do romantismo trapalhão estejam exorcizados. Nestes maravilhosos quatro, estão-no.
O caso deste disco é um pouco mais complicado, porque para concertos de guitarra o guitarrista não se basta: esse facto podendo explicar como é que a aproximação de David Russell aos concertos de Rodrigo resultou numa desilusão, quando a orquestra que o suporta é remetida para um desvanecido pano de fundo, fazendo desaparecer as dinâmicas de integração da guitarra com as intervenções orquestrais, que é a base de um concerto – pedir a um instrumento, e logo a guitarra, que aguente sozinho um concerto às costas é um absurdo interpretativo que estragou uma gravação de um guitarrista que merecia o melhor. Ora, surpresa nossa quando aquilo que se parece configurar como as irritantes operações de charme editoriais de juntar artistas (e nem estávamos a pensar nos três tenores, mas calham bem), neste caso emparelhando Barrueco com o famigerado Placido Domingo, resulta, mais uma vez (o homem não falha, nem acompanhado) na melhor gravação do Concierto de Aranjuez e da Fantasia Para Un Gentilhombre que conhecemos. De facto, surpresa absoluta, a julgar por esta gravação, Domingo, no papel de maestro, revela-se de uma sageza e justeza imprevistas. As dinâmicas emparelhadas da guitarra e da orquestra estão no ponto certo, e se por vezes suspeitamos que a guitarra podia estar um pouquinho mais alta na mistura (problema quase insolúvel num concerto para este instrumento), a verdade é que a respiração da dinâmica orquestral praticamente justifica que a guitarra não seja exposta a uma presença demasiado óbvia nessa dinâmica, tendo o seu brilho justamente resguardado em secções determinadas, onde Barrueco é estonteante como sempre, até nos pormenores: vibrato como aquele que adorna a última nota que em pausa prepara a escala que levará ao final do andamento Canarios da Fantasia, é uma raridade preciosa (ouçam o vibrato e também percebem que “canarios”, aqui, pode ser tomada mais à letra que como citação de dança popular).
Guitarrista e orquestra (e maestro) complementaram-se pois perfeitamente nesta gravação, de ambas as peças, e, para fazer charme, complementaram-se também guitarrista e tenor em quatro canções adaptadas para guitarra e voz, em que Domingo pôde explanar um pouco o seu charme de tenor (há que fazer pela vida e pela sedução...). Canções que a guitarra de Barrueco, mais uma vez, sustenta com gabarito impecável, num registo instrumental que não é comum, mas que até tem bons pergaminhos. Neste caso, são canções reminiscentes da veia mais popular de Rodrigo, quer no tom quer na lírica, de encanto melancólico, a exprimir as cruezas e evasões que neste tipo de lirismo popular desenham um universo de esperanças e fatalidades.
Para exprimir também em pleno a singularidade do guitarrista, temos o bónus de duas peças para guitarra solo de Rodrigo, também muito pouco gravadas (é mesmo a única gravação que delas conhecemos). A evocativa e simples Zarabanda Lejana, a primeira peça do compositor para guitarra, a descortinar na sua transparência alguns dos procedimentos tonais que sustentariam igualmente alguma da sua obra mais complexa. E nesta se inclui a tipicamente à Rodrigo Un Tiempo Fue Itálica Famosa, com as suas escalas impossíveis a rasgar a lacónica exposição temática que lhe dá o seu chamariz recôndito e sedutor, em figuras repetidas em tensão e crescendo de melífluos ligados e inquietos staccatos, que abrem para uma secção intermédia em que os breves rasgueados, se conferem solar exposição ao ouvinte, são por Barrueco inteligentemente matizados na luz nostálgica de «um tempo que passou», conferindo-lhe tanto a carnalidade da rememoração como a consciência da distância da Itálica que un tiempo fue. Um belo exemplo do universo pictórico de contrastes de habita a tensa música de um compositor que, se se afirma como melodista numa postura algo neo-clássica nos seus concertos para guitarra, não deixa de se afirmar como homem do seu tempo, quer na inserção estratégica de algumas dissonâncias no discurso mais romântico (uma nota “errada” pintalgada aqui e ali para quebrar a clássica perfeição harmónica), como nestes concertos, quer na composição de peças cujas ressonâncias convocam universos composicionais e sonoros de diversa proveniência, desde um certo impressionismo, em certa obra pianística, como recursos evocativos do duende do flamenco na técnica das suas singulares obras para guitarra solo, e motivos populares e da tradição musical espanhola, como no caso da Fantasia Para Un Gentilhombre, as citações seiscentistas dos livros de danças populares de Gaspar Sanz (que partilha a honra de Gentilhombre dedicado do concerto com Segovia).
Por isso, por favor, quando virem nas secções instrumentais de guitarra a enésima reedição do Concierto de Aranjuez pelo Narciso Yepes, fujam a sete pés e procurem, peçam, exijam esta edição (bem como qualquer outra do senhor Barrueco – é infalível, e parte delas já estão a preços simpáticos, ainda que não saibamos se esta também – Placido oblige). E se julgarem que não faz diferença, vão depois à biblioteca municipal cravar uma edição à Yepes, e se a vossa opinião se mantiver, e nós nos tornarmos bilionários, devolvemos a diferença ao primeiro leitor que se queixar (sendo que, provavelmente, ó absurdo, as edições à Yepes nem sequer estão mais baratas que esta – se for o caso, é só ganhar).»

Harmonia Mundi

O descoroçoamento de uns é o contentamento de outros.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Ceci n'est pas un post à propos des caricatures de Mahomet

Reza a estória que ao entrar em palco para um concerto, Frank Zappa inicia as hostilidades fazendo a saudação fascista à audiência e emitindo um sonoro «Heil Hitler».
O público, primeiro atónito, terá acabado por retribuir em suficiente massa a saudação. Ao que Zappa abandona as imediações após declarar: «não toco para nazis».

Finalmente, o post sobre a actualidade porque todos ansiavam

Eu não tenho alma
(isto não é um post sobre os cartoons e geo-política religiosizada, quais civilizações ou colectivizações duvidosas qual carapuça)
e não gosto de aniversários
(isto não é um post sobre mim)
e nunca me tendo encontrado com a entidade em questão
(isto continua a não ser um post sobre religiões, pelo menos não das que dão direito a manifestações públicas)
mas já tendo trocado palavra sob a forma redutora de "comentários" com uma sua aparição de poderes linguísticos often (inglês) extraordinaires (francês) (how poliglotas we are! - mas não tens tradução para poliglota, pois não nababo?)
(isto não é um post sobre amiguismos editoriais)
I wonder if I can sing along...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Quasi-redundância

Apodar um western de gay.

(portanto, a única questão que verdadeiramente interessa saber é se «Brokeback Mountain» pode ser considerado um western - revisitado. explicitamente revisitado como já só pode um western ser, se se optar pela liberdade, ou aí sim libertinagem, de continuar a integrar algum opus nesse género finito. mas western)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

E a propósito: A Deformação Do Artista Enquanto Jovem

O pior serviço que se pode prestar hoje a um jovem é iniciá-lo nos prazeres da leitura. Felizmente, mal iniciado, consegui manter a frugalidade na sua satisfação, apesar da tentação do pecadilho intelectual. Mas, na torta veia que me inspira, se é de deformar juventude que se trata, e se esta é a única lista que já vi por essa blogosfera fora que não parece ter colhido candidatos, e além do mais já passou do prazo: estamos aí.
Ora vejamos.
Eu já não sei o que é um jovem de 14 anos. Por isso: inimputabilidade sugestiva.
Para começar, um desopilanço humorístico para dar à leitura um prazer instrumental: «Wilt na Maior», Tom Sharpe. Há quem goste d’Uma Conspiração de Estúpidos, John Kennedy Toole. Eu não. Mas há quem goste. Considere-se o perfil do petiz na decisão. Atenção que a capa é logo um turn-off.
Depois, um arengada pseudo-filosófica-existencial-místico muito ao suposto gosto de jovens em formação para se crerem bonzinhos enquanto mamam uns shots na 24 de Julho às custas da parentela: «Siddartha», Herman Hesse. A chave da relevância da arengada é, claro, a virtude do caminho e não do achado: a arengada propositiva não interessa, interessa o arengar. Até podem não o captar, mas engolem-no na mesma. Isto é sageza.
Depois, humor à portuguesa um pouco mais requintado: um Eça não pode faltar, apesar de provavelmente já ter esgotado o prazo de eficácia geracional para tal função. Nunca por nunca os Maias. Eu apostaria na «A Correspondência de Fradique Mendes». Talvez As Cidades e as Serras se o rapazito ainda é daqueles arrastado ao campo pelas famílias ancestrais. Não o Padre Amaro: a desilusão das expectativas montadas (cof cof) pela Soraia seria o fim da empresa.
Para romances mais contemporâneos, e respectiva socialização formal, talvez o Rubem Fonseca, na dúvida se é preciso estar em crise de meia-idade para córtir: «Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos».
Considerar «O Deus das Moscas», William Golding, pelo reconhecimento juvenil, atracção aventureira, anárquica e suspense, apesar da teleologia filosófica duvidosa.
Não haver contos é uma maçada porque deixa Agualusa e Mia Couto de fora, e seus respeitáveis potenciais pedagógicos (os romances não têm o mesmo efeito).
O tesão sempre foi crucial para a (de)formação. Neste caso creio que formação mesmo. Mas é complicado gerir. «A Casa dos Budas Ditosos», Ubaldo Ribeiro é desempoeirado mas talvez gráfico demais, e não usa camisinha. Dúvidas, dúvidas: não são coisas que se ofereçam. Sugerir aos pais que os deixem "casualmente" esquecidos em recanto visível.
Talvez optar pel’ «O Perfume» do Süskind que pode combinar os benefícios dos dois critérios anteriores, e tem premissas sedutoras literariamente falando (ou seja, cativantes da jovem mente a deformar).
Considerar a intermutabilidade da Anne Frank com «Se Isto É Um Homem», Primo Levi, para rapazes já demasiado socializados para não ler diários de raparigas, notwithstanding.
Para um cheirinho de atracção sci-fi com inoculação de preocupações panópticas, «Admirável Mundo Novo», Aldous Huxley, pode ser bastante eficaz. Não o deixar ler prefácio, se o tiver.
A inclusão pode ser variável no lugar, mais para o final, mas creio que valeria a pena insistir n’«As Vinhas da Ira» (Steinbeck, para quem insiste em esquecê-lo) apesar da extensão. Essencial para boa formação humanista. Isso mesmo gente, humanista.
Indispensável para a inquirição metafísica sem a insuportável lâmina pessoana: Borges. Um qualquer, excepto talvez os mais esotéricos ou eruditos: não as Ficções nem Outras Inquirições. Talvez «O Fazedor».
Enxertar poesia deve ser feito, mas mais para o final: é complicado de fazê-lo comer tais mariquices, na forma e frequentemente na intenção. Eugénio não me parece a menos que seja menino com potencial "sensível". Sophia precisa de maturidade ao contrário do que muitos pensam. Se o petiz for bom de cabeça, o Herberto Helder pode ser deslumbrante, mesmo não percebendo nada, ou precisamente não percebendo nada. Dar Pessoa a jovens merece protesto da Associação da Protecção para os Animais: não estão capacitados para tal nível agónico de angst. Pessoa não é bonito. Repitam comigo: «Pessoa não é bonito». Talvez custe a muitos (au) mas talvez «A Praça da Canção» (do Sr. milhão de votos) não fosse mau, mas só a Praça da Canção, já nem O Canto e as Armas, já retórica pátria a mais (lembramos, isto é só iniciação hã, não queiram o puto já a citar clássicos na Kapital – ou pior, citar O Capital, Marx, para quem insiste em esquecer). Acrescentar para efeito poético mais denso e espraiado Drummond: uma boa antologia.

Quantos são? Já não sei. Nunca me interessou. Nem para cumprir listas sirvo. Aprendi-o, sofri-o, com livros. E só li estes a vida toda, atente-se. Nunca mais. Deixem o moço em paz.

Vasos comunicantes

Claro. Não consegui (re)ver (ou antes, ver, finalmente, na dignidade vera envolvente do pleno ecrã propício) Wayne e Maureen apascentar o amor no equívoco bulício das colinas de uma idílica, not so quite, Irlanda (e não de uma not so quite idílica Irlanda, atenção). Não pude morrer tranquilo ontem, portanto. Nada de novo. Eles tiveram a bondade de se condoer assim (conferir foto ao lado).
No entanto, maldito espírito nem da desistência mais funda de nem se ter com fôlego para se exercer o desistir, abnego a perda desse visionamento-panaceia-universal por sabê-lo, surpreso, ter sido visionamento-descoberta de outrém Porque no limitado referencial dos universos que cremos nosso (logo, enganosamente todo), não se duvide que a atribuição de sentido passa sempre pelos referentes que temos. Assim sendo, para todos os efeitos da humana compreensão, a cadeira que eu saiba que outrém tomou seria sempre parte da cadeira da minha ausência. Ficou-lhe bem, portanto, partilhar a comoção com esses despojados.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Someone Needs To Get BACK IN The Closet (2)

Claro que o melhor da lista de queixas de sábado de Sousa Tavares fica para o fim. Qual é o primeiro (primeiro) vício (vício) que ele sente periclitante nas suas inclinações pela ditadura bem-pensante? Ser heterossexual. Uhhh, o povo das margens... Mas esperem que fica melhor. Heterossexual, e acrescenta: «full-time» (brilhante e delicioso! e de excelsa complexidade cultural). Ora, Miguel Sousa Tavares já nos tinha levado a perceber que a discriminação dos homófobos era uma grave consequência efectivas das lutas pseudo-emancipatórias pelos direitos sexuais ou coisa assim. O que é giro, porque sendo impoluto (como eu), até é a favor do casamento entre homossexuais (do mesmo sexo, já agora), mas acha que por ser contra a adopção por homossexuais, é logo apodado de homófobo por toda a gente (pois como se sabe, TODA a gente é a favor disso - e venha o referendo). Mas agora Sousa Tavares leva-nos a perceber que já são os próprios heterossexuais, na sua heterossexualidade (full-time), que estão em perigo. E bem aquilatadas as andanças hetero no espaço público, temos mais uma vez que reconhecer: ele tem razão.

A gente, misantropos de blogs, anda distraída e tal, não dá conta, mas se dermos um pulinho à rua, que hoje em dia, como é comummente sabido, é Carnaval sempiterno de proto-Carmen-Mirandas-com-chumaço-mal-puxado-para-o-rego-ai-filha-que-não-enganas-ninguém, e a bicharada só comenta que agora os heteros estão impossíveis. Agora que ser gay e arengar a bilha é que é cool, é ver a heteralhada a dar um pulinho nas saunas, outro nos quartos escuros e tal, e como quem não quer a coisa dar uma arejada graçola traseira que nem se sabe pôr a jeito (denunciado o portador) a ver se alguém lhe pega generosa ou equivocadamente de atracão sem perguntar de onde vem (como é de bicha!) e lhe ensina o que é ser um man's man, curso de art-décor incluído. O Sousa Tavares tem razão!
O "verdadeiro" hetero, se deixa de ser full-time dá cabo da vida a toda a gente: os hetero resistentes, a aguentarem a tentação do part-time (belíssima conceptualização de orientação sexual) tornam-se mavericks com medo de a manada ir de arrasto para Brokeback Mountain; os homos, todos super-trendy, têm que gramar com heteros neófitos a quererem ser inaugurados no fabuloso mundo do fashionable e explorar novas zonas erógenas, e que raio, no mínimo um bom cu não tem sexo, né?! Não espanta que nesses espaços públicos avacalhados de degenerações de sobre-exposição à indumentária da Judy Garland só se ouça repetidamente o mesmo pregão: «eh pá, não tenho nada contra heterossexuais, até tenho muitos amigos heterossexuais, mas pá não venham é com as suas mariquices para cima de mim».

Começaram a deixar os heteros sair do armário... foi nisto que deu. Depois não se queixem, seus liberais de araque.


Acrescento: esquecia-me que para Sousa Tavares, no seu desencanto de jurista com a lei e a justiça, a "natureza, a liberdade e o bom-senso" se tornam as únicas fontes legítimas de lei em que acredita.
Eu até posso perceber o desafabo, e até posso perceber a vontade de retornar a um mundo simples onde muitas complexidades eram varridas e amassadas debaixo do tapete. Mas um cronista sério, e auto-definido como jurista a puxar galões, não pode brincar com coisas sérias em frase de taberna. A natureza serviu e serve como maior e mais perversa fonte de legitimação de desigualdades que nada têm de naturais, e que só a lei dos homens (que nunca será natural, como o homem nunca será meramente animal, maldita consciência, reflexividade e socialização sem a qual não se faria gente, pois é, deixe lá os instintos e a sociobiologia careca do "Macaco Nu") sob essa capa impoluta pretende tomar como tal, e como tal universalmente válidas. Ninguém precisa de apontar a Sousa Tavares os crimes que em nome da prostituição da palavra natureza se cometeram e se cometem. Precisa só de lhe lembrar dessa triste e bem mais ampla realidade que ainda macula a nossa civilização (e não a nossa "natureza").
Com a palavra natureza não se brinca.

Someone Needs To Get BACK IN The Closet (1)

OK. A passagem do Sousa Tavares do Público para o Expresso era definitivamente o salto que lhe faltava para se arvorar em mártir S. Sebastião dos homens de cepa (e não digo homens à moda antiga porque os meus fiéis sabem que tal nomenclatura exige outro saber-estar) se o S. Sebastião não teimasse com os retratistas em o pôrem naquele gingado abichanado de anca e jeito afanicado na fronha (para confirmação/contestação é favor conferir aqui), em vez de se pôr ao desafio qual forcado dos touros bem-pensantes que afinal são mal pensantes (o pensamento de Sousa Tavares é complexo).
Isto é giro, porque assim se vão desenhando as linhas de fractura social que talvez ainda tornem este país interessante.
Pois vejamos de que se queixava este sábado o ilustre cronista (e eu juro que quando ele não se põe com estas mariquices marialvas - oops - eu gosto, pá, gosto do homem, diria mesmo que tenho muito amigos como o Miguel Sousa Tavares, sou impoluto; e quando se põe com estas coisas, é muito divertido, tanto que gasto o tempo que gasto a escrever isto).
O cavalheiro afirma-se, bufando no limite da sua estóica paciência com os atentados intelectuais da doxa bem-pensante, finalmente farto da ditadura do politicamente correcto, cujos contornos normativos o estão prestes a tornar um pária social caso não mantenha secretos uma panóplia de vícios (a palavra é Vícios, meus amigos, para 500 euros) cada vez mais condenados, perseguidos ou proibidos.
A lista é deliciosa e lá iremos. Mas a prova de que Sousa Tavares saltou as raias da lucidez, é que mesmo para os casos onde a sua fúria indignada poderia colher perfeita razoabilidade ele consegue dar a inflexão para manifestar que isto é mesmo tudo contra ele, e os da sua rija cepa.
Veja-se o caso da perseguição moral aos fumadores, de que Sousa Tavares se queixa: é óbvio que nos seus contornos discursivos e operativos as campanhas e certas políticas anti-tabágicas não se ancoram somente em questão "técnica" de saúde pública, e para o comprovar basta uma análise de conteúdo de 3 patacos ao tom e teor dessas campanhas, uma comparação com a menor atenção concedida a outros vícios atentatórios da "saúde pública", e uma análise do imiscuir nas garantias de liberdade estritamente individual - OMS anyone? - como se o indivíduo não tivesse direito de futricar os seus pulmões (e no entanto podemos, coisa bem mais daninha, ter que gramar com a Britney Spears nos altifalantes de um centro comercial) salvaguardado o não futrificar de pulmão alheio.
Mas o que acrescenta Sousa Tavares? Que fuma, «incluindo charutos». Ahh. Anátema. É que o SG Gigante é para malta fina, que escarra em cheio no cuspideiro. Agora, charuto... Só pra labrego de balão de conhaque aquecido ao pé da lareira com os pés a amansar o labrador depois da extenuante caçada, pobre acossado. O que com os outros vícios elencados, nos dá bem a medida que Sousa Tavares anda é com complexos de elite. Ou seja, já não deixam esta aristocracia plebeia, a pulso adquirindo sua distinção social, alardear a sua condição simbolicamente demarcada. E então, Sousa Tavares sente-se perseguido porque vai à caça, vai à pesca e à tourada; gosta de perdizes e pezinhos de coentrada e joaquinzinhos fritos (tudo sic., e duplamente sic. para os jOaquinzinhos... pOr favOr), joga cartas(!) e bebe(!). Enfim, um Manuel Alegre sem um milhão de votos, mas certamente com o chapéu e o bacamarte do Davy Crocket encostado à porta do modestamente apodado casebre no monte para aboletar chumbo no urbanita ufano a clamar pelos direitos dos animais (pézinhos de coentrada?!) ou pela infantilidade da pulsão para o jogo.
Ou seja, eu quero simbolicamente ser de elite, mas sem ser simbolicamente acossado como elite pela maralha que não é da minha elite, que é só prá minha elite. Percebe-se? Prontos.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

Por Vós - 100 Posts

É fatal: de cada vez que passa um dia sem uma postada, chusmas e chusmas de mensagens enxameiam e obstroem (?) a morada de correio electrónico, entre suplicantes "não deixe assim desamparado o embevecido leitorado" (se fosse o do King's College, com certeza) e o inflamado "que raio de maneira é esta de falhar ao cumprimento da legislação metafísica do serviço público ao leitorado?!".
Ora, sucede que chego a este ponto após um desvario editorial que me levou a desperdiçar 4 posts num só dia 1 de Fevereiro, quando nas boas semanas só me surge um (tamanha imprudência deve deixar a minha economia de postagem à míngua por um mês, mas para ter economia de postagem é preciso mais vida que a que carrego, por isso, what the hell). Tendo em conta que na intentada imputação de uma ditadura moral à leitura deste espaço, é imperativo moral a precedência de cada post relativamente ao seguinte, e se deve vergar à ignomínia quem não depositou o olhar dedicado ao que precede esta elegia, convenhamos que tínheis fartura com que vos entreter. Que isto, atenção, não é para polinizadores levianos - só devotos recolectores daqui podem acartar frutos, as causas psiquiátricas do que, nos são absolutamente estranhas, e as consequências psiquiátricas do que, igualmente (e viva a pseudonímia).

Mas vamos ao que interessa, a espelhar como a minha exigência quasi-keiseriana impotente absolutamente contrária às regras do bom blogar brota da minha infinita dedicação por vós. Sim, vós.

Minhas queridas e queridos devotos leitores (sim, here's looking at you kids, este é especial de corrida para cada um de vós 5).

É verdade, este é o centésimo post.
Pensarais vós, como eu, que não se esperaria lá chegar.(?)
Pensarais vós (remanescentes e magnânimes estóicos) ainda melhor, como eu, que não se deveria lá ter chegado.(?)
Pois, chegou-se. Facto lamentável, mas irreversível, que deveremos encarar com a placidez das ruínas irrecuperáveis e a fatalidade do empreendimento humano na chafurdice inútil.
Mas outorguemos-lhe dignidade. Aqui a medida da dedicação neste percurso improvável: quando publico um post, invariavelmente me surgem no sitemeter (fazendo explodir as visitas diárias até dois dígitos) hordas e hordas de cibernautas de países de anglo-saxónica persuasion (ou que a ela se dedicam na blogagem), certamente apanhando o nome do blog nas actualizações que vão aparecendo no Blogger. Chegados a um panorama de esquartejamento da língua portuguesa (ainda assim, em língua portuguesa), claro, dão de frosques. Mas tal sugere que, estivera eu na disposição (assaz aparente) de em anglo-saxónica linguagem decantar todo este lodaçal proto-retórico, e o meu universo de leitores multiplicar-se-ia (indubitavelmente) exponencialmente (fazei vós as contas, que deixei a calculadora mental na noutra garrafa de grogue).
Por isso, espero que tenhais isto em conta na leitura do obrar (sem(?)) que ora e ora vos dispenso: é de uma dedicação sem limites, no sacrífico da quantitativa audiência que poderia decair sobre este espaço, qual dilúvio bíblico.
Só por vós, me quedo nesta leda quietude.
Nunca o esqueçais, camaradas.
You see, - proferiu solene, no pesar valoroso do destino transmutado vontade por voluntarioso abraço- I could have been huuuuge.

Acrescento - esta postada é uma reconstituição da postada primeira do mesmo título e temática que publiquei há uma hora atrás e que por conspiração cibernauta ou cibernética insondável foi apagada.
Duas coisas: (1) acautela-te pulha, que quando acabar o curso gratuito via net do MIT vou-te caçar. (2) não confiem (somente) em dispositivos cibernáuticos para guardar postadas.
É tudo. Carry on.

A promise is a promise (fullfilment is something else)



«sometimes everything's so true
so when you come down from your death-defying labors
i'll still be in love with you»

Indignação condicional (2)

A Cinemateca ignorou olimpicamente a minha sugestão fílmica para o ciclo «Vozes do Outro Mundo». Francamente, se esta bodega não serve como instrumento de pressão social eficaz em esfera nenhuma, que raio ando eu aqui a fazer? Não me pus a escrever blogs para o mundo permanecer o mesmo! Não, desculpem, como, mas como é que o Cavaco é eleito depois do que escrevi sobre ele. É que não se percebe!...
OK, divago.
Eu queria evitar o desastre de tomar a acção em mão, mas devo partir para formas de transformação social mais directas: para o caso em questão (e temei portugueses, quando tiver pachorra para pôr o resto do país na ordem), anuncio daqui um boicote à Cinemateca (e isto é só o início). O boicote começou exactamente ontem à meia-noite, e durará todo o tempo, sempiternamente, em que eu não esteja a ir à Cinemateca. Como não dá para ir hoje ver o chocho do Cary Grant à Ingrid Bergman, quando muito suspender-se-á temporariamente (temporariamente, hã, é sempre só até ao próximo filme, hã) quando tiver que ir ver o grande John Wayne caçar a gloriosa Maureen O'Hara, e ser caçado por ela, onde, como nas grandes histórias de amor de que esta, como as outras, no seu momento é sempre a única (por isso sou solteiro, consta), morais e dramas e angsts pessoais são enunciados apenas para serem mandados alegremente às urtigas entre uma pint e um pêro nos queixos à sacana em descarado desacordo com as assisadas normas do marquês de Queensbury para fazer a folha a quem nos inflama os maus fígados de forma civilizada ora pois. É a vida rapaziada...
Entretanto, comeide (cf. Amarcord) com mais uma fotografia do Eric Portman, qué por causa das coisas (julgavam que eu me ficava, não? A vingança é terrível, gniah ah ah).

A blogosfera as some presumed to know it (2)

Numa altura em que do cochicho ao boato à onda de choque se anuncia com secreção de sucos intelectuais o advento (personalisticamente bizarríssimo para o meu pobre entendimento, confesso) do Vasco Pulido Valente à blogosfera (que começou ainda antes de o cavalheiro ter texto escrito), alguém finalmente sinaliza esse movimento com um bocadinho de distanciado bom-senso: here here, no elogio (certamente) e na inquietação (a pedra de toque).
Se eu recuperar alguma massa cinzenta, algo mais haverá a dizer sobre o assunto. Entre as possibilidades e a efectividade de funcionamento das redes blogosféricas, vejo muitos sinais de fechamento social, de que a receptividade pavloviana antecipada ao high-profile de escribas já instalados no espaço público formal é indicador significativo.

(falamos de efeitos sociais, claro: nada a objectar, obviamente, à decisão individual de cada escriba se espraiar também por este meio de ressonância - indicador de algo também, possivelmente no fechamento discursivo do espaço público, mas a pedir mais inquirição)

Pôr-se a jeito

Na dança das categorias de apreensão (e largamente constitutiva legislação da validade) auditiva, manifestar apreço publicamente por algo que recaia em caixas classificatórias como qualquer coisa tipo "progressivo italiano" (porque independentemente da relevância descritiva, as categorias ainda mais obstam à já limitada liberdade da audição descomprometida na formatação auditiva de cada um) é estar a pedir com todas as letras para não ser levado a sério para todo o sempre na matéria. Seja. Ou porque a fruição de certos objectos suplante o escárnio, ou porque certos opróbrios de apriorismos paridos são mais coroas de glória que imputação de vergonha, sejam eles benvindos, se for o caso. 

Seria um (duplo) prazer.